sábado, 23 de abril de 2016

Coração de Urso (1º Capítulo)

Erico L. Kneubühler



Coração de Urso















As coisas poderiam ser infinitamente mais simples, mas, pela fúria do mundo, elas nunca serão.



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Capitulo 1: O Que há depois das Nuvens?



Sou o que restou, e o que resta são lembranças.
É impossível dizer quantas estações eu tinha quando aconteceu, mas pelo meu tamanho e pelo meu rosto, vou dizer que eram quatorze. Não sei como expressar de uma forma simples tudo o que aconteceu naqueles breves momentos, apesar de minhas dúvidas, não podia ser mais claro de que tudo o que eu conhecia, incluindo a mim mesmo, havia deixado de existir.
- É sempre igual… – Murmurei enquanto olhava as nuvens – É sempre a mesma coisa…
            Um lugar onde o céu é uma densa e impenetrável camada de nuvens, cuja cor se assemelhava ao puro ouro, seu tom clareava para a cor prateada, até finalmente se apagar por completo, e assim indicando a passagem do tempo. E sim, não havia céu, apenas nuvens. Sobre o telhado de uma pequena casa de paredes brancas e teto alto, estava eu. Você pode me chamar de Ernest. O telhado coberto de neve dourada, que caía densa, e ao mesmo tempo leve, descendo com suavidade e pousando sobre tudo. As nuvens estavam no ápice da cor dourada, e elas que iluminavam e aqueciam a pequena cidade cercada por água. A cidade tinha apenas trinta casas e não tinha nome, nem mesmo o mundo tinha um nome, e na verdade, não era preciso.
Escorregar pelas telhas e aterrissar de pé sobre a neve me pareceu uma boa ideia. Pois é, não foi. Tentei pousar com os pés no chão, me agachando quando tocasse a neve, porém, tudo que consegui, foi perder o equilíbrio no último instante e me chocar contra a neve, que por mais que não fosse tão expeça, amorteceu minha queda a ponto de eu não sentir dor, na verdade, nada que fazíamos nos fazia sentir dor, mas tínhamos certa noção do que devíamos evitar como pular do alto das casas ou cortar os pulsos. Levantei-me e caminhei até a porta, alta, de madeira clara, detalhada com cavidades quadradas simétricas, que formavam uma espécie de xadrez. Abri a porta, vendo Allan, um homem alto, de cabelos loiros e os olhos azuis, rosto magro e comprido, qualquer um o acharia uma figura simpática.
- Quando saiu de casa? – Perguntou ele, assim que fechei a porta
- Acordei cedo. – Respondi. Aproximei-me da mesa e me sentei à frente de Allan
            O lugar tinha cortinas brancas arrumadas, um fogão a lenha acesa, com sua portinhola de aço fechada e uma chaleira com água sobre o fogão. Preso nas paredes estava vários pequenos armários, um balcão de madeira e cerâmica conectado ao fogão. No centro do cômodo, uma mesa retangular com algumas cadeiras em volta, a mesa estava coberta por uma toalha branca tingida por tons de café, havia um prato sobre a mesa com alguns pães redondos, e do outro lado da mesa, uma jarra de vidro com água. Derramei a água dentro de um copo de vidro. Peguei um pão, o observei por um momento, sua casca dourada estava coberta por um punhado de grãos brancos, apesar de crocante, seu interior era macio, eles nunca possuíam o mesmo gosto, podia ser doce, salgado, apimentado, amargo, azedo... Apesar de comer esses pães todos os dias, eles nunca se tornavam enjoativos, sempre inacreditavelmente deliciosos, sempre surpreendiam com seu gosto aleatoriamente saboroso, valia o mesmo para a água. Soprei a fumaça que saía do meu copo, só então bebi um gole, estava quente e adocicado, com leves toques e sabores estranhos, enquanto exalava um cheiro sutil e muito agradável.
- Estou entediado. – Comentei
Allan me lançou um olhar impassível.
- Por acaso está inventando palavras? – Perguntou ele antes de beber um gole de sua água. Como não sabia o que estava sentido, tive que criar uma palavra para expressá-la. Foi assim que surgiu a palavra “entediado” - Por que não sai um pouco?
Observei o interior do copo.
- É... Vou fazer isso. – Deixei a copo sobre a mesa e me levantei
- Não vai terminar de comer? – Ele perguntou
- Não. – Me virei para sair – Volto quando pratear. - Era como nos referíamos ao céu prateado antes do completo escuro – Tenho uma pergunta. – Disse me virando subitamente na direção de Alan – Pode parecer aleatório, mas… Por que me adotou mesmo? – Tentei soar de maneira descontraída, acho que deu certo
- Por que…? – Murmurou ele, pensativo – Acho que não tive escolha. – Ele pareceu pensar um pouco sobre o motivo – Vou dizer que nem me lembro mais dos detalhes.
- Então me conte o que você lembra. – Pedi, cheio de curiosidade
- Eu estava deitado quando ouvi batidas na porta, abri para saber quem era, e vi um homem, ele era.... Diferente. – Allan franziu as sobrancelhas ao se lembrar do homem - Seu cabelo e sua barba eram uma mescla de cinza e branco, seu rosto parecia marcado. – Allan segurou a própria testa por um momento – Eu nunca o tinha visto antes, e nunca mais o vi.
- Ele não disse nada? – Perguntei tentando absorver qualquer informação
- Se ele disse, eu não lembro. – Admitiu Allan, voltando sua atenção a seu copo - Ele me entregou você quando ainda era um bebe de colo, e foi embora… É isso.
Fiquei em silêncio por alguns momentos, até ele estender seu punho fechado, eu o toquei da mesma maneira.
- Obrigado. - Falei enquanto nossas mãos continuavam conectadas. Nós sorrimos um para o outro, respirei fundo e me afastei. Cheguei a abrir a porta antes de me virar uma última vez, pois ainda havia algo não totalmente explicado – Allan? Por que ter cabelos brancos o torna tão.... Diferente? – Minha voz carregava ingenuidade
Alan me encarou nos olhos, como se minha pergunta fosse óbvia.
- Você já viu alguém de cabelos brancos?
Não respondi, compreendia agora, apenas me virei, e abri a porta.
            Na saída, me deparei com a neve ainda mais intensa, caminhei um pouco, percebendo que não havia uma pessoa sequer nas ruas. Parei e olhei para traz, também não havia ninguém, quando voltei a seguir meu caminho, fui surpreendido ao ver uma figura parada poucos metros de onde eu estava. Uma garota, de pelo menos doze estações, cabelos que iam até o meio das costas, com algumas mechas trançadas, espalhadas por seus cabelos vermelhos puxados para uma cor alaranjada. A neve caía sobre seus ombros, se acumulando sobre seu longo e escuro casaco, ela limpou a superfície de sua roupa, deixando a neve perfeitamente branca ir para o chão. Ao focar meu olhar pude ver que em sua pele clara, havia sardas correndo pelo nariz até as bochechas, olhos verdes, a forma de seu rosto, com o queixo e as bochechas levemente arredondadas. Ela chamava muita atenção, podia acontecer um cataclismo que eu continuaria olhando para ela. Estava parada com o rosto erguido, observando as nuvens, quando passei por ela, ela virou seu rosto, fazendo nossos olhos se encontrarem, e ao notar que seus olhos brilharam no instante em que nos cruzamos, eu simplesmente parei, parei de andar, de pensar, de respirar. Aquilo me congelou a sua frente, ela se virou por completo na minha direção.
Ambos nos mantivemos em silêncio, até que ela revelou sua voz suave.
- Você está bem? – Perguntou ela
Suas palavras me fizeram acordar de qualquer tipo de hipnose que seus olhos me submeteram.
- Por que não estaria? – Consegui dizer
- Não sei. – Respondeu ela, esboçando um sorriso – Pode me chamar de Evelyn.
- Ernest.
            Ao ouvir meu nome seu rosto passou de um sorriso gentil para uma seriedade repentina, ela apontou para as nuvens com o indicador, enquanto seus lábios se moveram em uma frase tão aleatória, quanto impactante.
- O que há depois das nuvens? - Foi como se uma montanha tivesse caído sobre a minha cabeça. Parecia que um oceano de dúvidas tinha invadido minha consciência, como se uma represa tivesse se rompido, inundando minha mente com perguntas nunca antes feitas. Levei minhas mãos à cabeça, meus olhos se arregalaram, meu corpo parecia se desfazer em neve, tantas dúvidas, todas tão complexas e sem resposta, que eu simplesmente não conseguia parar de tentar responde-las em minha mente, mas que eram impossíveis de serem alcançadas. Foi quando senti um tapa em meu rosto que quase me derrubou – Recomponha-se. – Ordenou Evelyn, seria – Eu só lhe fiz uma pergunta. – Seu tom retornou ao suave e calmo
- O que foi isso?! – Perguntei incrédulo
- Um tapa. – Ela respondeu calmamente – É quando se acerta alguém com a palma da mão. – Eu estava claramente desnorteado, não sei se pelas dúvidas, ou se pelo tapa – Esse lugar é muito estranho. – Comentou ela de forma completamente desconexa ao assunto - Tudo é tão certo aqui, tudo tem seu lugar. Me sinto tão bem, desde que cheguei, tenho me sentido tão feliz, um prazer tão incomum. Parece que estou dormindo.
- O que ela está dizendo? - Pensei, tentando entender toda essa situação – Felicidade incomum? - Eu nunca poderia entender, pois estava completamente acostumado com isso, uma felicidade que se mantinha presente o tempo todo, o “Prazer do Sono”, como nomearia no futuro - O que é você? – Perguntei em voz alta
Ela ignorou o que eu disse.
- Pode soletrar seu nome? – Perguntou Evelyn
- O que?
- Soletrar! – Ela repetiu de forma lenta e alta – Soletrar! - Ela sacou um pedaço de papel dobrado de seu bolso enquanto falava
“Escute o que ela diz”
            Disse uma voz. Aquela voz, ela me seguia a um tempo incontável, falando comigo através de minha mente. Em meus sonhos escuros e sem vida, nada de imagens, apenas suas palavras ecoando na escuridão, era uma voz traiçoeira e sarcástica, mas que sempre parecia estar segura de si, segura de suas ideias. Já fazia um tempo desde que eu não a escutava mais, e ela voltava agora, mais segura e convincente do que nunca.
- E-R-N-E-S-T… - Evelyn consultava o papel a cada letra que eu ditava, quando acabei, ela o guardou e voltou atenção total a mim
- Você vem comigo. – Ordenou ela, segurando meu braço, me puxando com certa rispidez
            Conforme andava, comecei a perceber um fenômeno totalmente estranho para mim, comecei a sentir que a neve que cobria toda a rua, estava derretendo lentamente, e também havia parado de cair, me soltei de Evelyn, estava paralisado, olhando para o céu dourado que estava prateando rapidamente. Quando a prata consumiu o ouro por completo, a neve recomeçou a cair, porém seus flocos caíam negros em um contraste totalmente incrível com as nuvens. Evelyn agarrou meu braço com força, o apertando com as mãos pequenas.
- Olhe para mim! – Ordenou com a voz séria – Quero seus olhos comigo! – Balancei a cabeça positivamente, ela soltou meu braço e continuou caminhando, e eu a segui - E não adianta perguntar o que está acontecendo porque não vou responder! – Exclamou ela, falando muito rápido
Permaneci calado, pois era exatamente isso que eu perguntaria.
            Quando dobramos uma esquina, toda a neve perfeitamente branca havia desaparecido, dando lugar a sua versão completamente negra, completamente oposta. Foi quando estrondos vindos do chão, seguidas de erupções de neve negra que emergiam de buracos que se abriam a cada instante, alguns pequenos, outros grandes. As colunas de neve se erguiam de acordo com o tamanho dos buracos, quanto menores, mais altas as colunas chegavam. As pessoas não tiveram nem a oportunidade de abrir as cortinas, pois as colunas começaram a se erguer abaixo das casas, que tinham seus pedaços arremessados para todos os lados. O chão se rompia em explosões vindas abaixo das ruas cobertas de neve negra, que tinham sua estrutura feita de pedras perfeitamente encaixadas umas às outras. Agora, completamente destruídas.
Foi quando parei de andar.
- O que foi que eu disse?! – Gritou Evelyn, se virando bruscamente
- Allan… - Murmurei, dando as costas para Evelyn, e correndo de volta para casa
Não ouvi qualquer palavra vinda de Evelyn, apenas ouvia os estrondos e as erupções de neve negra que fazia o chão tremer e ruir. Havia escrito que mesmo que acontecesse um cataclismo, continuaria olhando para ela, acho que exagerei. Desviei de alguns buracos que surgiam em meu caminho, escombros decoravam as ruas, pelo menos duas casas desmoronaram quando passei por elas, e eram incontáveis os escombros que quase me mataram durante minha corrida. Minha casa estava coberta pela neve negra, porém não havia sido atingida, passei a correr o mais rápido que conseguia.
“Minhas palavras não significam nada pra você?”
Não tenho certeza de quanto tempo fiquei desacordado, devo ter sido arremessado por uns bons metros até aterrissar sobre a neve, e ser arrastado pela tempestade negra que aquela erupção causou. Aquela em questão devastou uma área muito maior do que qualquer outra, a coluna de neve se ergueu até as nuvens e se espalhou tão rápido quando eu fui lançado. Abri os olhos, tudo estava muito confuso, as coisas tremeluziam ou ficavam embaçadas, não sabia bem onde estava. Em um momento era uma praia, onde a areia eram puros cristais de gelo e o mar calmo era infinito. Quando minha visão se estabilizou, comecei a sentir uma dor agressiva percorrendo meu corpo, quando parei de gemer e me contorcer, percebi que estava deitado na borda de um dos buracos, que se formou dentro de uma casa prestes a desmoronar, pois metade de sua estrutura foi levada pela rajada de gelo negro.
- Preciso de uma palavra para isso... – Murmurei tocando meu peito, que doía como nunca doeu   
“Dor”
 - Esse é o sonho mais dor que já tive… - Murmurei
“Doloroso”
- Doloroso...
“Concordo”
            Me levantei com dificuldade, ouvindo as paredes ruírem, senti um liquido quente escorrer pelo meu tronco, havia um corte profundo no lado direito do meu peito, além do sangue que escorria de minha testa, estava coberto por arranhões e cortes de menor gravidade. Assim que consegui ficar de pé, virei o rosto e cuspi um pouco de sangue. Meus ouvidos zuniam, não ouvia mais o som dos estrondos, minha perna esquerda praticamente se arrastava quando eu caminhava, cada movimento era como uma chicotada. Estava tonto e cambaleante pela perda de sangue, atravessei um buraco numa das paredes, em que uma pessoa com o triplo do meu tamanho passaria facilmente. Do lado de fora, as nuvens estavam negras, porém, ainda era possível ver o resultado do que acabara de acontecer, das casas que não foram totalmente ao chão, sobrara apenas suas carcaças. O ar era uma mistura de poeira com flocos negros de neve, era impossível ver qualquer corpo, pois haviam sido soterrados pelos escombros, e as que não foram tiveram seus corpos cobertos pelo entulho, foram tapadas pelas erupções negras.
A casa atrás de mim desmoronou.
“Posso dizer que não era bem o que eu esperava”
- O que quer dizer...? – Pensei
“Tem alguma sugestão? ”
- Não, não tenho... – Pensei – Eu quero que acabe...
            Senti uma mão sobre meu ombro, porém meus olhos já não conseguiam distinguir feições, na hora, eu só sabia que era um homem, pois ele se agachou, segurou minhas pernas e me ergueu até eu estar deitado sobre seu ombro com a barriga voltada para baixo. Eu estava tão anestesiado pela perda de sangue, que meu corpo já não sentia mais qualquer dor, quando recobrei parte dos meus sentidos, eu estava sentado, com as costas apoiadas em um escombro, a minha direita havia duas pessoas removendo pedaços de concreto de uma pequena região circular, quando notaram que eu os olhava, um deles se aproximou de mim e se ajoelhou ao meu lado.
- Durma Ernest... - Murmurou Evelyn de forma serena. Meus olhos se apagaram no mesmo instante, ouvindo suas palavras suaves - Quando acordar, eu respondo suas perguntas... 

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